#03 - MELHOR SÓ DO QUE BEM ACOMPANHADO
a ilusão paradisíaca da solitude versus a realidade da solidão.
sempre achei o termo solitude um pouco cafona. entendo a tentativa de diferenciação, dela para solidão em si, mas acho que essa definição é menos um estado de isolamento do que um reflexo neoliberal para coaches ganharem dinheiro falando aquilo que todo mundo já sabe. a solidão é real, passamos a vida lutando contra ou procurando uma maneira mais confortável de lidar com ela. a solitude me parece só mais uma vertente de uma positividade tóxica que temos propagado tanto por aí, como se até a experiência de se estar sozinho não pudesse ser ociosa e dolorida, mas uma catalisadora criativa, uma oportunidade de autoconhecimento que deve ser utilizada também como fonte de produção. tudo bem se sentir sozinho, desde que você esteja fazendo algo de útil com isso.
essa semana voltei para São Paulo depois de muito tempo fora. passei os últimos cinco meses arrumando qualquer desculpa para fugir dessa cacofonia de pedra, que já foi minha liberdade nos primeiros anos que me mudei pra cá. desde que comecei a morar sozinho, e isso já faz mais de um ano, tive altos e baixos com a minha solidão. em alguns momentos, sentia falta de ter alguma vida além da minha habitando esse espaço, e talvez isso esteja relacionado a uma necessidade de ter alguém perto que testemunhe a minha própria existência. mas a questão é que mesmo depois desse tempo, e de tantas coisas aprendidas com horóscopo e terapia, a solidão ainda me pega desprevenido. há uma recaída toda vez que volto de um período muito sociável, como se eu caísse sem paraquedas no mar revolto dos meus vazios que até então estava sereno, para navegar e descobrir buracos novos que só Deus sabe de onde vieram. São Paulo tem uma parcela de culpa nisso. seus prédios imensos e seu aroma sublime de pó preto reforçam a sensação de isolamento, e cada um segue vivendo dentro do seu próprio bloco de concreto, se restringindo a interações superficiais pela janela sem ao menos convidar para entrar.
mas além da cidade em si, o que acentua essa angústia é como temos sido ensinados a lidar com a nossa própria solidão. todos os dias, ao menos um post discursando sobre a solitude e os benefícios de ficar sozinho aparece na minha tela. sim, os pros são imensos. concordo plenamente com a necessidade de aproveitarmos nossa própria companhia e de não dependermos tanto emocionalmente das nossas relações afetivas. o problema é que a solitude está sendo vendida como um objetivo que deve ser alcançado, como um paraíso onde a felicidade plena é a sua recompensa. e quando experienciamos a solidão em si, e nos confrontamos com o silêncio dos nossos pensamentos e questões, ficamos angustiados porque não alcançamos o objetivo esperado, não encontramos nenhum oásis criativo, e tudo vai por água abaixo: me sinto sozinho, não consigo lidar com a frustração, e procuro mecanismos que me tirem dessa angústia. e aí as saídas são diversas, dos vícios mais clichês às horas imersas em vídeos de ASMR no Tik Tok. a solitude virou meta, e junto com a felicidade está sendo vendida como um troféu que nunca será alcançado.
no fim, estamos desaprendendo a lidar com a dor. esse papo é extenso, e talvez seja necessário um outro texto para discuti-lo com mais profundidade. mas numa sociedade do curtir, qualquer incômodo é anestesiado nos primeiros sintomas; qualquer atrito, é atenuado com um simples block. e quando começamos a experienciar o caminho árduo da solidão, não sustentamos. buscamos refúgios, voltamos para o barulho das redes que ao menos nos conforta nas horas que estamos online. mas o alívio é passageiro: me sinto mais sozinho quando bloqueio a tela. será que essas saídas paliativas não têm piorado a nossa sensação de solidão justamente por recorrermos a elas toda vez que nos sentimos um pouco angustiados? solidão é foda, não há dúvidas. estar em paz com ela é uma manutenção constante. qualquer progresso é logo refutado diante de novos desafios e lacunas que aparecem. e a última coisa que quero nesse processo é me cobrar de qualquer autoconhecimento produtivo. nessas horas, só quero ficar jogado no sofá, ouvindo Marina Lima e tomando um Merlot. o problema está na ilusão: não há paraíso nenhum, só um monte de vozes que você precisa distinguir, e com sorte, começar a gostar de algumas no caminho.
bônus: pros solitários que gostam de dramatizar no banho, deixo minha playlist de choro brazuca. espero que gostem.
:)
atualmente não sei se me sinto mais solitária quando bloqueio a tela, ou quando estou online. É difícil distinguir. é tudo tão plastificado. As vezes queria ter nascido antes das redes sociais serem o centro de nossas vidas. eu sou user delas, mas sei lá, deve ser moralismo.... seu texto FOI muito reflexivo, eu também concordo sobre solidão e solitude, é tão difícil lidar com a solidão... e a sociedade bloqueia mto isso atualmente, por gerar ensinamentos equivocados ou tóxicos, as vezes a gente precisa de alguém pra dar conforto, então é difícil lidar com a solidão.
eu não sei, em algum momento da história começamos a olhar para o que chamamos de “solitude/solidão” e lidar com isso. parece árduo, mas é uma caminhada que provavelmente vai depender do seu repertório. há boas evidências de pessoas que gosta que se deram bem sozinhas? há serenidade no silêncio ao invés do barulho no tumulto de uma festa? há dor intrigante nos pensamentos que se deslocam quando sua tela do celular é bloqueada? bom, não sei dizer ao certo. acho que as sombras no quarto são imagens que nossa mente cria para nos afastar do sono no final das contas. estar só pode não ser como estar envolto de risadas e boa conversa, mas talvez a experiência da solitude por si só seja determinada pelos macetes psicológicos que temos. é como tentar dizer a si mesmo “não há monstros, apenas reflexos”, e depois, dormir.